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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Hiato médico

Riad Younes
Foi um ano incrível. A velocidade de sua passagem, pelo menos como a percebemos, foi espantosa. E com esta vertiginosa roda do tempo, trouxe várias situações para a medicina e a saúde. Os editores de CartaCapital me pediram, gentis e generosos como sempre, para destacar o que teve de melhor no ano que termina. Os últimos 12 meses não foram somente de notícias boas, de drogas e técnicas revolucionárias, ou de tratamentos milagrosos.

Nesse último item, tivemos aqui no Brasil talvez um dos exemplos lamentáveis de sensacionalismo imediatista, que acabou por levar milhares de cidadãos a acabarem com o estoque de um medicamento que prometia, de acordo com a capa da revista Veja, o milagre do emagrecimento. Não demorou um dia para que desmentidos veementes de especialistas e de farmacologistas ressoassem em todos os meios. Foi um dos pontos mais baixos nos assuntos de saúde de 2011. E não houve capa esclarecedora na semana seguinte.

Outra lamentável constatação refere-se às revistas e aos periódicos médico-científicos verde-amarelos. Enquanto as revistas médicas americanas mais prestigiosas, como a New England Journal of Medicine e o Jama, lidas por milhões de médicos ao redor do mundo, incluíam em seu conteúdo semanal vários (três ou quatro por semana) artigos discutindo os problemas da saúde pública, do acesso à medicina adequada de todos sem distinção, a alocação de verbas da saúde e os problemas éticos que afloram à toda hora nos Estados Unidos, aqui, em nossas mais lidas e reconhecidas revistas médicas brasileiras, como Clinics ou a Revista da Associação Médica Brasileira, raros artigos sequer discutem nossos problemas locais de saúde pública. Provavelmente já estão todos resolvidos, e não mereçam maior perda de tempo dos médicos e das autoridades brasileiras.

Lamentável, também aqui, o distanciamento da elite intelectual local do desequilíbrio total da medicina oferecido à população em nosso país. Nem sugestões ou soluções. Quase nada. Baixo também este ponto em 2011. Por outro lado, os pesquisadores conseguiram um número grande de pontos altos. Estudos que representaram avanços incontestes. Outros anularam milagres recentes e nos remeteram de volta a rotinas do passado. Não menos eficientes, e muito mais baratas. Estudos abriram janelas para horizontes futuros brilhantes, a serem testados e confirmados. Citarei a seguir, de forma breve, alguns destes feitos grandiosos da ciência médica em 2011. Não serei abrangente, pois o espaço não o permite. Muitos desses relatos, e outros mais, já foram discutidos semanalmente nas colunas de saúde de CartaCapital pelos colegas e amigos Drauzio Varella e Rogério Tuma e por mim.

A começar por um problema que afeta milhões. Síndrome do intestino irritável. Desconforto. Distensão abdominal. Diarreia e flatulência. O tratamento até hoje resulta em sucesso e controle dos sintomas em poucos indivíduos. E por tempo limitado. O emprego de um antibiótico -novo, -rifamixina, poderá drasticamente modificar essa situação e trazer conforto aos sofredores crônicos. Dados preliminares, mas certamente uma janela enorme para os muitos -portadores dessa síndrome.

O famoso exame para medida do HDL, ou colesterol bom, está sendo colocado em dúvida. Após décadas que os cardiologistas recomendaram medir, rotineiramente, os níveis de HDL, e insistiram em aumentar estes níveis a qualquer custo, objetivando a proteção das artérias dos perigosos ateromas obstrutivos, dados novos podem colocar em xeque o que se considera “normal” ou “desejável”. Pesquisadores publicaram dados mostrando que existe uma parte, maior ou menor, do HDL que se torna disfuncional. Mesmo presente na corrente sanguínea, não consegue proteger as artérias. Sugerem outros testes, mais sofisticados, para determinar, não somente quanto HDL uma pessoa tem, mas também sua capacidade de retirar a gordura da parede das artérias.

Mais uma janela para um futuro urgente, que poderá nos obrigar a rever todas nossas estratégias de diagnóstico e de prevenção de infarto e de derrame. Um estudo muito interessante introduziu um novo conceito no tratamento das metástases do câncer, especialmente o câncer de mama. Medicamentos com capacidade de bloquear a ação de uma enzima, PARP, envolvida no reparo dos danos ao código genético dos tumores, aumentaram muito a eficácia da quimioterapia clássica em matar as células cancerígenas. Agiram como preparo da célula para o golpe fatal da quimioterapia. Nos pacientes que receberam esta combinação de drogas, quase dobrou a taxa de resposta e de benefício clínico. Acreditam os cientistas que futuros estudos deverão incluir esta abordagem em pacientes selecionados para melhorar as chances de controle do câncer e de uma vida mais prolongada.

Tumores relativamente raros estiveram também na vitrine dos avanços médicos em 2011. Primeiro, os tumores neuroendócrinos do pâncreas com metástases tiveram grande salto na eficiência de seu tratamento com dois medicamentos já utilizados em outras doenças: Everolimus e Sunitinibe. Os resultados publicados de forma concomitante na revista New England Journal of Medicine estabeleceram nova rotina mundial e ofereceram esperança a pacientes que antes não tinham opções adequadas.

Segundo: um tumor, linfangioleimiomatose pulmonar, que afeta mais frequentemente moças jovens, e que tinha pouca opção de cuidados. As pessoas sofriam de progressão lenta da doença, piora da função pulmonar até atingir insuficiência respiratória grave, irreversível. Sensação de afogamento progressivo. Devido à sua raridade, o envolvimento de associação de apoio aos pacientes teve um papel decisivo. Tudo começou quando uma jovem foi diagnosticada com esta doença grave. Sem opções brilhantes, sua mãe iniciou uma associação de apoio a pacientes com a mesma doença. Ativa e persistente, conseguiu estimular e patrocinar um estudo que resultou em medicamento mais eficaz. Exemplo do fundamental papel da sociedade em moldar a pesquisa médica aplicada. Esperança para todos.


Um estudo sobre o bloqueio da metástase pode mudar e muito o tratamento do câncer. Foto: iStockphoto
Por outro lado, um estudo muito elegante conseguiu demonstrar que a vida moderna, colocando nossos filhos em ambientes artificiais, protegidos do contato com tudo, como se vivessem em bolhas, mais que duplicou a incidência de asma e bronquite na infância. Prevenir era quase inimaginável até a publicação desta pesquisa que provou a fundamental importância do contato, desde a tenra infância, com a natureza, em ambiente rico em germes e bactérias não patogênicas, na construção de uma imunidade adequada. O risco de crianças que vivem nas fazendas de desenvolver asma é 39% a 50% menor. Tirar os filhos do shopping e levá-los para o interior pode ser definitivamente uma boa ideia.

Em março deste ano, um estudo teve grande repercussão no ambiente médico, principalmente entre infectologistas. Finalmente, os cientistas comprovaram a eficácia de medicamentos capazes de bloquear enzimas do vírus da hepatite C, até então sem tratamento específico eficaz, em reduzir a infecção viral, e até desaparecer por completo todo sinal de vírus ativo. A hepatite C era a vilã da atualidade. Boceprevir e telaprevir serão as vedetes do tratamento do vírus. Um cientista classificou este estudo como a aurora da luta contra a hepatite C.

Ao lado dessas inovações realmente importantes, alguns estudos colocaram um freio em rotinas e recomendações correntes. Recentemente, o papel da vitamina D foi enfatizado e suas propriedades de prevenir doenças graves, como o câncer, anunciadas aos quatro cantos. Um estudo publicado no meio deste ano colocou em dúvida tais afirmações. Após várias pesquisas, um painel de especialistas não identificou a vitamina D como um fator preventivo contra o câncer. Concluíram que não existe ainda evidência suficiente para que alguém compre ou ingira grandes quantidades desta vitamina, com a intenção única de reduzir seu risco de desenvolver tumores malignos.

Cautela também foi recomendada no uso intensivo de novas tecnologias introduzidas no mercado, como a correção da válvula mitral por cateterismo, e não por cirurgia, eficaz em casos selecionados. Além de caras, os especialistas preocupam-se com a troca pura e simples de bons resultados a longo prazo, alcançados pelos tratamentos convencionais e consagrados, por tratamentos e tecnologia moderna, conveniente, e com incisões pequenas. Recomendam que se analise cada caso com cuidado, longe do modismo imediato. O que ficou patente em todos os cientistas que analisaram essas e outras pesquisas publicadas nas melhores revistas do mundo foi sua preocupação em manter os pés dos médicos no chão. Quase metade dos editoriais científicos alertava para evitar o entusiasmo do “milagre” do dia, e terminava seus artigos de crítica com a frase talvez mais importante da ética médica. Primum non nocere. Antes de tudo, não causar dano. Ao paciente, é claro.

FONTE: http://www.cartacapital.com.br/saude/hiato-medico/

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